Enjoadinho

Por volta de cinco e meia da tarde estava eu com boina, casaco sobre casaco, cachecol, luvas e o meu cachorro sentado no banco do parque, em frente ao laguinho. Enquanto o bicho corria de um lado para o outro atrás das pombas eu, que depois dos cinco anos não vejo nas pombas lá muita coisa interessante, prestava atenção na cena que se passava no banco ao lado.
Um casal jovem, desses que investiram uns poucos anos de trabalho e boa parte das muitas ilusões em um primeiro relacionamento sério conversava.
Entre uma jura de amor eterno e outra ela entrou em assunto delicado. Pretendia viajar atrás de novas oportunidades profissinais e não tinha previsão de volta. Falou das chances de levá-lo junto, de eles contruírem um futuro...! Mediante o silêncio que se fez ao fim da sua fala, retirou-se com um adeus magoado. "Adeus, Tobias", apenas.
Nem bem ela havia cruzado o trapiche, o rapaz, com a cabeça entre as mãos, murmurou qualquer coisa sobre se arrepender para sempre.
"Mas que diabos!" pensei. " Amarelou na hora mais importante!" e fui tomado de um desejo de revelar-lhe que ouvira tudo, de berrar com ele e dizer "Avante! Não desperdiça a chance de ser feliz!"
Aspirei fundo e, muito sério, falei:
- Tobias!
O homem me olhou, espantado. Continuei:
- Tobias, meu rapaz! Larga já essas pombas! Vamos embora, já está tarde!
Uma tremenda coincidência essa, de homem e cão dividirem um só nome! Pensei ainda sobre o caso e acho que deveria ter falado com Tobias, o moço gente. Mas afinal ele tinha medo de parecer, para a namorada, muito bobo e apaixonado tanto quanto eu guardava receio de passar por velho enxerido. No fim das contas, quem sou eu para julgá-lo? amarelei.
Espantaram-me a fluidez, a clareza, o ímpeto com que miss jane discordava. Vi bem clara a diferença que existe em ter ideias próprias, frutos fáceis e lógicos de uma árvore nascida de boa semente e desenvolvida sem peias ou imposições externas - e ser "árvore de natal", museu de ideias alheias pegadas daqui e dali, sem ligação orgânica com os galhos, de onde não pendem de pendúculos naturais e sim de ganchinhos de arame.

E comecei a aprender a também ser árvore como as que crescem no campo, e a deixar-me engalhar, enfolhar e frutificar livremente por mim próprio.


M. Lobato
O Presidente Negro.
(...)Gosto de permanecer ali na sala em raros dias iluminados, sobretudo ao cair da tarde, quando os últimos raios de sol varam os vidros para espalhar cores sobre os objetos. São muitos objetos, tantos que freqüentemente penso que daqui a algum tempo será difícil movimentar-me aqui dentro, no espaço que se reduz, quase todos feitos por mim mesmo.

Como já disse, pouco saio, uma certa renda sobre alguns imóveis deixados por meus pais me permite passar aqui dias inteiros, fazendo coisas com as mãos. Descobri faz algum tempo que as mãos se opõem à cabeça, e quando você movimenta aquelas, esta pode parar. Não sei se é uma grande descoberta, talvez não, mas de qualquer forma gosto quando a cabeça pára o maior tempo possível, caso contrário enche-se de temores, suspeitas, desejos, memórias e todas essas inutilidades que as cabeças guardam para deixar vir à tona quando as mãos estão desocupadas. Ocupo-as então, fazendo coisas que depois disponho pelos cantos.

Há longas tiras de pano colorido ou papel crepom penduradas do teto, pelas portas pendem cortinas, longos fios de contas ou sementes enfiadas em cordões que balançam emitindo sons nas poucas vezes em que abro as janelas para que entre o vento, restos de manequins, braços e pernas e troncos e cabeças que costumo recolher nas latas de lixo quando saio a caminhar, nas horas em que não há mais ninguém nas ruas, e cacos de louça, garrafas cheias de água de muitas cores, pedaços de caixotes que também pinto para que não pareçam demasiado crus, e ainda recortes de figuras ou velhas fotografias que vou colando pelas paredes, montes de palha, fitas, flores secas, sobretudo rosas, sobretudo vermelhas, cujas pétalas depois de mortas ganham uma tonalidade de sangue coagulado.

Isso me pacifica.

Naquela tarde, porque chovia e não havia luz suficiente para que eu pudesse permanecer na sala, vendo as cores dos vidros desdobradas em outras sobre os objetos, tinha caminhado pela casa toda procurando algo para fazer. Cheguei a pensar em pintar as vidraças na porta do andar inferior, a que dá para o pátio interno, mas só depois de preparadas as tintas, as águas, os pincéis, percebi que não gostaria de permanecer ali sentado, vendo as poucas plantas incharem com a água da chuva, o caminho de pedras que leva até o tanque cobrindo-se de folhas caídas.Foi então que subi para o quarto da frente, no andar superior, decidido a pintar os vidros que dão para a rua. Ë uma dessas janelas em forma de guilhotina, dividida em duas partes, cada uma delas com dois vidros retangulares, separados por uma tira estreita de madeira. Fiquei indeciso entre qual das quatro partes pintar primeiro, e acho que começava a escolher o segundo vidro, a contar de baixo para cima, pois é justamente o que dá para a casa em frente, e mais de uma vez surpreendi os vizinhos olhando aqui para dentro, as luzes apagadas, esperando descobrir qualquer coisa na minha vida que eles não compreendem.

Não sei quem são os vizinhos. Vejo alguns rapazes, algumas moças, mas tantos e sempre tão diferentes — na verdade não sei se diferentes ou os mesmos, apenas não presto muita atenção neles cada vez que os vejo, porque não me interessam. Como supunha que eu também não interessaria a eles. As cidades grandes como esta têm dessas coisas — você não precisa simular interesse algum pelas pessoas em volta, elas não exigem mais que um bom-dia, boa-tarde, boa-noite, às vezes nem isso, silêncio nas horas em que se costuma fazer silêncio, ruído nas horas em que usualmente se faz ruído. Não faço ruídos nem mesmo nessas horas: eliminei máquinas, televisões, rádios, embora goste de música. Mas quando quero ouvi-la, canto para mim mesmo quase sem voz um som irregular, cheio de altos e baixos, que vem do fundo da garganta, sem palavras. Talvez seja essa ausência de ruídos que os interessa, os vizinhos, ou quem sabe os intriga a muralha de vidros coloridos interposta entre o de-dentro de minha casa e o de-fora dela, não sei. Rindo um pouco comigo mesmo, porque a pintura do segundo vidro na janela do quarto dificultaria ainda mais a observação da minha vida, eu me preparava para começar o trabalho quando alguma coisa no segundo quarto me chamou.
(...)

caio fernando abreuu ♥